por Ruan Vieira Amaral.
O direito brasileiro está cada vez mais “americanizado”. Essa é uma afirmação que traduz bem o atual momento do sistema jurídico brasileiro, que passa por uma tendência de incorporar casos americanos nas decisões judiciais e se inspira em mecanismos jurídicos próprios americanos para difundi-los em um processo de hibridismo. Essa “americanização” possui seu ponto maior na atuação do Supremo Tribunal Federal, que além de ter sido uma Corte criada baseada no modelo de Suprema Corte dos Estados Unidos, passa por um processo cada vez maior de citação de jurisprudências americanas em suas decisões.
Nesse sentido, pode-se perceber que mesmo o direito brasileiro pertencendo a uma tradição jurídica advinda da Europa continental – a Civil Law -, enquanto o direito norte-americano pertence a tradição da Commom Law, essa diferença de tradição jurídica não resultou em um empecilho para que o direito estadunidense exercesse forte influência no direito brasileiro. No Brasil, essa influência não é uma novidade, de modo que o modelo brasileiro foi fortemente inspirado nos ideais americanos sob os aspectos de federalismo, bicameralismo, presidencialismo e, principalmente, a adoção de uma jurisdição constitucional, passando a criar uma Corte constitucional com capacidade de declarar leis inconstitucionais (chamado de controle de constitucionalidade no direito brasileiro e “judicial review” no direito estadunidense).
O direito americano chegou ao Brasil com a Constituição de 1891, já sendo inspirada no modelo americano que se formou a partir da Convenção da Filadélfia e, posteriormente, ratificada, nas convenções estaduais, trazendo os ideais supracitados (federalismo, presidencialismo, etc). Nesse processo de implementação da Constituição de 1891, Rui Barbosa, um dos maiores juristas e intelectuais brasileiros de seu tempo, defendia a instalação de uma Corte Suprema, inspirada no modelo americano, colocando-a como pedra angular do novo sistema e forma de manutenção da regularidade e independência entre os poderes. A partir desse momento, com a adoção do federalismo brasileiro, começou o processo de influência das jurisprudências americanas e da própria Suprema Corte como fontes em nosso
ordenamento.
Todavia, o prestígio e independência da Suprema Corte americana, que causava entusiasmo em Rui Barbosa como modelo referencial de equilíbrio do sistema jurídico, não se deu de forma imediata. Nos primeiros anos do Tribunal norte-americano, diversos juízes sofreram ameaças de impeachment depois de julgar casos controversos que desagradavam políticos tradicionais. Os políticos utilizavam o mecanismo de impeachment dos juízes para intimidar os julgadores, visando impedir um crescimento da Corte e almejavam que os juízes ficassem submissos aos seus interesses políticos. Esse panorama mudou durante o período conhecido como “Era Marshall”, na qual a Corte foi presidida por John Marshall, que através do precedente Marbury v. Madison, estabeleceu de forma definitiva a independência da Suprema Corte e afirmou sua importância, caracterizada por uma estabilidade dos juízes.
O precedente Marbury v. Madison (1803) é de extrema importância para o constitucionalismo e rompeu paradigmas constitucionais no seu julgamento, sendo citado até os dias atuais como um dos precedentes mais importantes da Suprema Corte. Nesse caso, foi afirmado o controle de constitucionalidade pela primeira vez, possibilitando ao poder judiciário controlar a constitucionalidade das leis, algo que não estava previsto de forma expressa na Constituição Americana e, a partir disso, afirmou-se a competência do judiciário para rever atos do executivo e do legislativo, influenciando o resto do mundo com esse dispositivo.
O desenvolvimento do caso envolvia questões políticas envolvendo os republicanos e federalistas, de modo que James Madison (Secretário de Estado dos EUA) observou que um grande número de magistrados – juízes que tiveram seus cargos criados pelo antigo presidente já na reta final do seu mandato, em período conhecido como “midnight judges” – ainda não haviam recebido a carta de nomeação, sendo entendido, portanto, como passível de cancelamento, o que foi efetivamente decidido por ele. William Marbury, um desses magistrados que tiveram a nomeação cancelada, ajuizou uma espécie de mandado de segurança (“writ of mandamus”) contra o cancelamento de seu diploma na Suprema Corte. Dessa forma, o caso envolvia a competência da Corte em expedir uma decisão mandamental contra o Secretário de Estado. Para pacificar o entendimento e não sofrer nem desmoralização e nem tensionamento político com o governo federal, o juiz Marshall, bastante hábil em sua decisão, reconheceu o direito de nomeação de Marbury, porém entendeu que a norma infraconstitucional que autorizava a impetração direta do “writ of mandamus” na Suprema Corte chocava-se com a Constituição. Desse modo, a Corte poderia negar o pedido sem declarar que o executivo poderia ser controlado pelo judiciário. Ao mesmo tempo, declarou uma lei editada pelo Congresso como inconstitucional pela primeira vez, estabelecendo a supremacia da Constituição e o judiciário como seu intérprete final.
Nas palavras de BARROSO, o caso Marbury v. Madison:
caracterizou-se pelo reconhecimento de uma dimensão jurídica à Constituição, com a possibilidade de sua aplicação direta e imediata por todos os órgãos do Poder Judiciário. O grande princípio aqui, desde o começo, foi o da supremacia da Constituição, em que juízes e tribunais, e especialmente a Suprema Corte, podiam exercer o controle de constitucionalidade e, consequentemente, deixar de aplicar as normas que considerassem incompatíveis com a
Constituição¹.
Ainda segundo BARROSO, “ao longo do tempo, todavia, após um início relativamente irrelevante, a Suprema Corte foi progressivamente ocupando espaço de destaque no cenário institucional americano”². Dessa forma, observa-se que o precedente Marbury v. Madison desempenhou um papel pioneiro na jurisdição constitucional, o que impactou não somente os Estados Unidos, mas toda a jurisdição constitucional do mundo.
A partir desse importante precedente e analisando o período de polarização que o Brasil passa, o que acaba resultando em críticas e difamações ao STF quando a decisão desagrada determinado lado político, é imprescindível ressaltar o papel salutar que tal importante instituição exerce. Desse modo, apesar dos diversos ataques proferidos pelo Presidente da República, seguido de ameaças exercidas por deputado federal e críticas veementes de outros atores políticos devido a decisões que desagradem algum espectro político, o Supremo Tribunal Federal exerce uma importante função de guardião da Constituição, papel imprescindível na consolidação de uma democracia, de modo que para exercê-lo é preciso a independência do Tribunal. Assim, críticas a decisões da Corte, fato comum a qualquer país com uma Corte Constitucional, são situações do exercício da liberdade dos indivíduos, porém ataques difamatórios e ameaças feitas aos ministros do Tribunal não devem ser aceitas, visto que tal ação seria uma forma de atentar a um dos pilares garantidores da democracia, extrapolando os limites da liberdade. Dessa maneira, o precedente Marbury v. Madison deve sempre ser invocado como paradigma de confirmação de independência da Corte para que ela possa exercer plenamente suas atribuições.
Ademais, esse processo de influência do direito americano não é exclusivo do Brasil, na medida que, observando o enorme prestígio da Suprema Corte e a preponderância dos Estados Unidos pelo mundo, diversos países, como Japão e Alemanha, também invocam precedentes norte-americanos julgados pela Suprema Corte. Esse fato também é ampliado pela posição hegemônica de superpotência exercida pelos Estados Unidos perante o mundo, na qual a expansão do domínio norte-americano ao longo das décadas sobre o mundo acabou proporcionando essa “americanização” nos demais países. Outro aspecto que ressalta esse papel de influência certamente se liga ao pioneirismo dos Estados Unidos em sua forma de organização do direito, visto que diversos países se inspiraram no modelo da Constituição Americana, observando os aspectos de supremacia da Constituição, federalismo, controle de constitucionalidade, etc. Dessa forma, o pioneirismo americano sobre esses mecanismos serviu de base para que os outros países se inspirassem e ampliasse a influência norte- americana em seus sistemas jurídicos.
Entretanto, é notório que o sistema jurídico de cada país possui suas peculiaridades, de modo que a incorporação de institutos norte-americanos deve respeitar essas particularidades. No intuito de incorporar precedentes estrangeiros para decidir casos nacionais, já foi possível perceber críticas e indagações se tal instituo seria admissível no próprio Estados Unidos. Em 2003, a partir do caso Lawrence v. Texas, em que o juiz Anthony Kennedy fez uso de um precedente estrangeiro na decisão da maioria e o juiz Antonin Scalia manifestou seu descontentamento afirmando ser perigoso o uso de decisões estrangeiras no direito nacional, a discussão ganhou força na Suprema Corte e puxou o debate entre juristas sobre a possibilidade de uso de decisões alienígenas no ordenamento norte-americano. Mais tarde, em 2005 através do caso Roper v. Simmons e em 2010, através do caso Graham v. Florida, o juiz Kennedy novamente utilizou precedentes estrangeiros, afirmando que essa incorporação de decisões estrangeiras como mero suporte argumentativo seria uma forma da Suprema Corte demonstrar legitimidade, já que o resultado encontrava respaldo na comunidade internacional. O juiz Scalia (nos casos Lawrence v. Texas e Roper v. Simmons) e o juiz Clarence Thomas (no caso Graham v. Florida) demonstraram suas irresignações pela invocação de precedentes estrangeiros, argumentando que essa utilização seria irrelevante à luz da Constituição americana e que a Corte não teria legitimidade para impor interpretações estrangeiras aos americanos, o que denota ser um embate ainda não pacificado e alvo de muitas controvérsias no sistema jurídico americano.
A partir dessa discussão no cenário norte-americano e analisando o hibridismo existente atualmente no direito brasileiro, com a incorporação de institutos de direito americano em nosso país, o que representa um ponto positivo de aproximação e inspiração daquele modelo, faz-se necessário, ao mesmo tempo, ter um juízo bastante crítico desse aproveitamento, pois, baseando-se na perspectiva histórica, é notável que o direito norte- americano já legitimou barbaridades. Nesse contexto, mesmo a Suprema Corte norte- americana possuindo um alto grau de prestígio, existiram diversas decisões proferidas pela Corte que são consideradas problemáticas, sendo casos como: Dred Scott v. Sanford, em que a Corte entendeu que negros não eram considerados cidadãos americanos; Minor v. Happersett, em que impediu o direito ao voto das mulheres; Plessy v. Ferguson, possibilitando o direito dos estados de impor a segregação racial sob a doutrina do “separate but equal”; entre outros casos. Todavia, é importante salientar que diversas decisões problemáticas como essas citadas tiveram, posteriormente, seu precedente superado (overruling), devendo os juristas brasileiros, ao incorporar institutos do direito americano, ficarem atentos para não “endeusar” demasiadamente o direito americano em detrimento do direito brasileiro, visto que até mesmo nas democracias mais consolidadas pode haver decisões judiciárias que suprimem liberdades e levem a perseguição de minorias.
Portanto, resta necessário que juristas, constitucionalistas e a sociedade fiquem atentos para decisões que não caminhem no sentido preconizado pelo Estado Democrático de Direito. Outrossim, ao incorporar institutos estrangeiros é preciso observar e respeitar as particularidades do direito brasileiro, não deixando que essa invocação descaracterize aspectos positivos de nosso sistema jurídico. Ademais, esse diálogo entre o direito brasileiro e o direito norte-americano já trouxe e ainda poderá trazer diversos outros avanços em nosso ordenamento, sendo entendido que a inspiração na jurisprudência estrangeira se caracteriza como um verdadeiro diálogo entre juízes constitucionais, devendo, para tal, ser realizado a partir de uma análise comparativa das opções políticas das Cortes e o contexto da sociedade em que se situam, sendo respeito as particularidades nacionais.
Esse movimento de aproximação e diálogo do direito brasileiro a aspectos típicos do direito norte-americano também se manifesta a partir de outras diferentes formas em nosso sistema jurídico. Como exemplo verifica-se a aproximação do direito brasileiro da doutrina do precedente judicial (stare decisis), teoria seguida nos Estados Unidos em que se determina a eficácia vinculante dos precedentes advindos da Corte Superior, visando assegurar que casos semelhantes tenham a mesma solução. Essa aproximação fica evidente ao se observar a adoção da súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, que passa a ter força normativa sobre todos os órgãos do poder judiciário, assim como se observa das súmulas adotadas pelo STJ, que, embora não sejam vinculantes como as súmulas do STF, possuem efeito persuasivo na busca do aprimoramento da segurança jurídica.
Ademais, esse movimento não se restringe ao campo constitucional, sendo verificado diversos mecanismos em nosso ordenamento infraconstitucional que advém da tradição estadunidense. Nesse sentido, pode-se observar essa influência em diferentes campos, tais como: no direito penal a adoção de institutos como “plea bargain” e a delação premiada; no direito civil a ideia do contrato de leasing; a ação coletiva (class action) no processo civil; as agências reguladoras no campo do direito administrativo; a ideia de sociedades anônimas no campo empresarial; entre outras. Dessa maneira, fica evidente que o direito norte-americano exerceu – e continua exercendo – uma forte influência na organização e formação de nosso sistema jurídico nacional.
Por todos esses aspectos, fica demonstrado a enorme influência que o direito estadunidense exerceu e continua exercendo no direito brasileiro. Esse movimento de conexão se nota desde a inspiração em nosso processo de formação jurídica aos ideais americanos, principalmente nos aspectos da Constituição, sob as ideias de federalismo, presidencialismo e jurisdição constitucional. Além disso, percebendo-se que o STF teve a Suprema Corte como inspiração, faz-se necessário, analisando o precedente Marbury v. Madison, assegurar a independência e reconhecer a importância dessa instituição com capacidade de jurisdição constitucional para que se tenha uma democracia exercida de forma plena. Essa “americanização” de nosso direito pátrio não se restringe ao STF, sendo possível analisar que no desenvolvimento do direito brasileiro infraconstitucional diversos aspectos típicos do direito estadunidense foram incorporados. Assim, esse processo de hibridismo encontrado atualmente, desde que seja respeitado as particularidades do contexto jurídico- político brasileiro, significa uma verdadeira troca de conhecimento ampliada pelo aspecto da globalização, visando aprimorar o ordenamento brasileiro.
Nesse sentido, observado a influência que o direito dos Estados Unidos exerce por todo nosso ordenamento e que cada vez mais precedentes estrangeiros são citados nas decisões dos magistrados – especialmente no STF – é de fundamental importância o estudo do direito norte americano, sua formação constitucional e a notoriedade da Suprema Corte estadunidense para que se compreenda de forma plena o processo de hibridismo existente no direito não só do Brasil, mas em diversos países pelo mundo.
¹ BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo (9o edição). São Paulo: Saraiva; 2019, p.117
² BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo (9o edição). São Paulo: Saraiva; 2019, p.487
Referências
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva; 2019.
CUNHA, Bruno Santos. STF vs. Supreme Court: o uso de precedentes estrangeiros pela Suprema Corte dos EUA e pelo Supremo Tribunal Federal. Migalhas, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 16 de agosto de 2021.
RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1992.