por Gabriel Costa
No segundo semestre de 2019, em edital promovido pela Universidade Federal Fluminense, tive a oportunidade de frequentar um semestre na Universidad de La República, em Montevidéu no Uruguai. Por sorte, esse intercâmbio ocorreu em um momento de efervescência política enorme, onde foram realizadas duas consultas populares.
O primeiro, se tratava de um plebiscito para deliberar aceca de uma reforma constitucional, chamada “Vivir sin miedo”, proposta pelo falecido senador, Jorge Larrañaga. A reforma, dentre outros pontos, permitiria a criação de uma guarda nacional formada por militares das forças armadas, para intervir na segurança pública, assim como a regulamentação da prisão perpétua. A reforma, posta em plebiscito, obteve 46,7% de aprovação, pouco menos do que o quórum necessário para aprovação, que é de 50%.
Já o segundo, dizia respeito a uma consulta popular para convocação de referendo, visando a derrogação da Ley nº 19.684, também conhecida como “Ley trans”. A “Ley Integral para las Personas Trans” está em vigor desde 2018 no Uruguai, e tem por objetivo garantir uma isonomia real para as pessoas trans, com o oferecimento de bolsas de estudos, programas de capacitação e vagas em empregos públicos. Além disso, foi proibida qualquer forma de discriminação em face desse grupo de pessoas.
Para que fosse convocado o referendo, eram necessários os votos de 25% da população eleitoral. Assim, a votação observada, de 9,90% da população apta para votar, não foi suficiente para convocação, e a Ley Trans segue em vigor.
Embora o Brasil também adote mecanismos de consulta popular para deliberações nacionais, até hoje, houve pouquíssimos casos em que tais mecanismos foram utilizados. Alguns exemplos são o plebiscito de 1993, que definiu a forma de governo e o sistema de governo no Brasil, que vigora atualmente, assim como o fatídico plebiscito de 1963, que determinou a volta do presidencialismo, o que viabilizou maior governabilidade ao então presidente, João Goulart, e antecedeu o Golpe Civil-Militar de 1964.
Enquanto isso, no Uruguai, boa parte das decisões importantes para o país são tomadas através de consultas populares, como o plebiscito de 2014, que rejeitou a redução da maioridade penal, o plebiscito de 2004, que garantiu o monopólio do Estado nos serviços de água potável e saneamento, ou até mesmo o histórico plebiscito de 1980, que impediu a legitimação do governo ditatorial-militar através de uma proposta de reforma constitucional, pavimentando a reabertura democrática.
Outro processo de consulta popular histórico, que deve ser votado em 2022, é o referendo contra a “Ley de Urgente Consideración”, considerada por muitos a maior iniciativa legislativa do governo do presidente Luis Lacalle Pou. A lei promoveu diversas mudanças na legislação nacional, como a ampliação da legítima defesa, e a permissão para que policiais portem armas em seus períodos de folga. Além disso, também foram aprovadas mudanças de caráter econômico, como reformas no sistema previdenciário. A oposição, protagonizada pelo sindicato PIT-CNT e pelo partido Frente Amplio, reuniu quase 800 mil assinaturas, visando a derrogação de 135 artigos da “Ley de Urgente Consideración”, superando o quórum necessário para convocação de um referendo no país, que é de 25% da população eleitoral.
Nesse curto espaço de tempo que vivi em Montevidéu, pude conversar com muitas pessoas, participar de manifestações, e perceber como a participação popular é um assunto sério para os uruguaios. A população é muito ativa nos debates nos ambientes de estudo, trabalho, e até mesmo em comícios e programas de televisão.
A visão clássica, de que a democracia se consolida no voto, não deveria continuar sendo um dogma. Não basta acreditar que a democracia se encerra nas urnas. A participação do povo nas tomadas de decisão é urgente, não apenas em referendos e consultas populares, como em conselhos de vizinhança, espaços de deliberação estudantil, organizações sindicais, e tantos outros espaços em que construímos a democracia diariamente.