Por Mariana Muniz
O direito comparado tradicionalmente classifica os sistemas jurídicos em common law e civil law. É muito comum ouvirmos falar que, em sistemas de common law, a formação do direito se dá a partir de precedentes, principalmente por meio da figura do stare decisis, enquanto – no sistema de civil law – o direito se origina nos códigos, nas leis emanadas do Legislativo. No entanto, mais recentemente a forte distinção entre os dois sistemas jurídicos teria diminuído, ocorrendo uma convergência entre ambos os sistemas.
O objetivo deste artigo não é tentar descrever ou explicar os diferentes fenômenos do direito comparado, mas sim expor as impressões que tive durante o semestre que passei estudando na Escola de Direito de Harvard como intercambista acerca da relação entre o sistema de common law e o ensino jurídico nos Estados Unidos. Mais especificamente, buscarei delinear as diferenças que encontrei em relação ao ensino jurídico no Brasil, tomando como base uma das disciplinas que cursei durante o intercâmbio, a disciplina de Corporations (direito societário).
Antes de iniciar o semestre, já previa que o curso de Corporations se basearia no estudo de casos julgados, principalmente pelas apellation courts americanas, acompanhado do método socrático, no qual há ampla participação dos alunos, que contribuem à aula com comentários, como será mais bem explicado a seguir. Como aluna de graduação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, que já adota o método socrático em algumas de suas disciplinas, já estava acostumada com aulas que têm maior contribuição de alunos e, até mesmo, com o estudo do direito a partir de casos práticos – embora nem sempre judicializados. Dessa forma, não esperava grandes surpresas ao longo do caminho.
Durante cada aula da disciplina, estudávamos 2 ou 3 casos a partir das decisões judiciais dadas em cada um deles. Para cada caso, um aluno era escolhido para expor o contexto fático do caso, assim como a decisão do tribunal, mais especificamente o dispositivo e a regra legal (precedente), que aquela decisão judicial forma. Em vez de falar aos alunos qual regra específica rege o caso em questão, o método de estudo de caso leva os alunos a derivarem a regra jurídica aplicável ao caso a partir do seu contexto fático e da decisão judicial relativa a ele. Assim, ao longo do semestre, estudamos temas centrais do direito societário americano, desde os deveres dos acionistas controladores e dos membros do conselho de administração, até práticas de insider trading e operações de fusões e aquisições (M&A).
Muitas vezes, os casos estudados eram justamente escolhidos por causa da suposta existência de equívocos nas decisões. Em muitas aulas, as perguntas feitas aos alunos eram justamente sobre quais ‘erros’ ou ‘equívocos’ nós identificávamos ao ler aquela decisão judicial, ou seja, se a razão de decidir ou, até mesmo, a própria regra legal contida na decisão fazia sentido a partir do que havíamos estudado (ou se ela parecia ser afetada por fatores extrínsecos ao direito). Assim, muitas vezes, os casos escolhidos serviam – na verdade – para explicar a diferença entre como os tribunais aplicam o direito, e o que o parecia ser a melhor aplicação do direito naquele contexto fático ou em contextos fáticos semelhantes.
Por um lado, estudar o direito a partir de litígios parecia o mais natural para certos temas, como insider trading, já que – de certa forma – o que interessa é saber quando alguém pode ser responsabilizado pela prática. Por outro lado, estudar temas como fusões e aquisições a partir de casos judicializados me causou certa estranheza. Ao estudar fusões de sociedades, em vez de abordarmos o tema a partir dos institutos e operações relevantes, assim como a forma de efetuá-las, o estudo se deu a partir de quais operações os tribunais, geralmente a Supreme Court de Delaware, que corresponde ao tribunal de segunda instância do estado de Delaware, entendem que configura uma fusão e as consequências jurídicas podem ser retiradas disso.
Seria uma transferência substancial de ativos de uma sociedade uma fusão, por exemplo? Uma cash-out merger pode ser considerada um resgate de ações? Em ambos os casos, a definição – pelos tribunais – do que constitui ou não uma fusão tem implicações jurídicas relevantes, por exemplo, na determinação da existência de direito de recesso (dissenters’ rights) pelos acionistas ou se o valor pago pelas ações deverá ser aquele definido no Estatuto Social (articles of incorporation) para o resgate. Nos EUA, onde o direito societário é eminentemente estadual, as respostas a essas perguntas variam bastante entre os diferentes estados. E essas respostas acabam por impactar as escolhas das sociedades do lugar onde serão incorporadas.
Um outro ponto interessante que pude identificar ao longo do curso foi o tratamento interdisciplinar dado ao direito. Como, nos EUA, a formação em direito só pode ser buscada após uma graduação em outro curso, os alunos de direito já têm uma bagagem de outras disciplinas, como economia, finanças, ciências sociais etc. Dessa forma, muitas vezes o professor poderia trazer conceitos relativos a outros campos do saber, principalmente de contabilidade e finanças, com naturalidade.
Apesar da estranheza de estudar o direito primordialmente a partir de litígios, fazer o curso de Corporations foi uma experiência bastante enriquecedora, não somente pelo conhecimento em si do direito societário americano, mas particularmente pelo raciocínio utilizado em sala de aula. Esse formato de ensino permite que os alunos desenvolvam pensamento crítico, sem que respostas pré-determinadas sejam oferecidas de antemão pelo professor. Acredito que esse método de ensino pode contribuir bastante para o ensino jurídico no Brasil, possibilitando que este abranja não somente o estudo mais metódico das instituições, mas também o desenvolvimento de um raciocínio jurídico mais crítico.
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