A peculiar relação entre setor público e privado nos EUA: novos panoramas em 2020-2021

Por Renan Pimentel

A relação entre setor público e privado nos Estados Unidos é bastante peculiar. Apesar de ambas as partes apresentarem interesses e tensões concorrentes, tanto as empresas quanto o governo foram capazes de equilibrar suas influências de modo a tornar a economia americana um caso de sucesso ao longo do século passado. Desse modo, analisar as características intrínsecas dessa relação se mostra relevante.

Os atributos mais importantes da relação governo-empresas nos Estados Unidos são: (i) a proteção governamental da propriedade por meio de legislações que fomentam a inovação; (ii) um sistema de mercado livre, visto que o governo americano controla pouquíssimos meios de produção; (iii) uma frágil estrutura de organização trabalhista que não fornece apoio adequado à classe trabalhadora e, finalmente, (iv) uma poderosa prática americana de lobbying que tende a privilegiar interesses privados (de grandes empresas e pessoas mais ricas) em detrimento de interesses públicos e comuns.

A primeira característica considerada como ponto forte nessa relação é a proteção aos direitos de propriedade conferida pelo governo americano. Apesar de opiniões divergentes, historicamente, o governo dos Estados Unidos se esforçou em garantir o exercício dos direitos de propriedade de seus cidadãos, através de instituições jurídicas, tais como a jurisprudência, leis estaduais e a Constituição.

Uma das propriedades relevantes para o crescimento econômico é a propriedade intelectual, cuja proteção foi notadamente garantida pelo governo americano através de um sistema de propriedade intelectual (PI) que inclui leis escritas como a Lei de Patentes de 1952 e muitos acordos internacionais, tais como o Protocolo de Madrid. O dinamismo e abertura à inovação fomentado por esse arranjo institucional fez com o que os EUA se tornassem um dos maiores investidores em pesquisa de desenvolvimento (P&D) e ser um dos líderes em concessão de patentes no mundo.

O segundo ponto forte dessa relação é a promoção de um sistema livre de mercado. Ao contrário de outros países desenvolvidos, como a França, conhecida por suas várias empresas estatais, o governo dos EUA não prioriza a atuar como ente empreendedor, controlando meios de produção. Ele busca fornecer um mercado amplamente livre, possibilitando a geração de riquezas de forma muito mais inteligente.

O governo do país dedica seu tempo, esforço e dinheiro em proporcionar instituições políticas e econômicas, a exemplo da regulação, para garantir que o mercado seja o mais livre possível. Enquanto isso, o setor privado se concentra apenas em liderar atividades empresariais, tais como manufatura. Como resultado desse conjunto, as técnicas são melhoradas, os custos de produção são reduzidos e os bens e serviços se tornam cada vez mais diversificados no mercado.

Não é à toa que o país é lar de muitas empresas revolucionárias, que mudaram globalmente o modo de vida, como o Facebook e Amazon. E, certamente, o Estado se beneficia de toda essa prosperidade econômica privada, pois, ainda que não administre as empresas, ele tributa dos ganhos das ricas corporações em seu território.

Há, no entanto, pontos fracos na relação governo-empresas dos Estados Unidos. O primeiro ponto é a fraca estrutura de organização trabalhista que em geral não favorece a classe trabalhadora. Conforme o “Institute of Political Economy”, entre 1979 e 2019, a parcela de trabalhadores cobertos por convenções coletivas despencou de 27% para 11,6%, o que significa que a cobertura sindical nesse contexto reduziu quase a metade do que era há 40 anos atrás.

O livre mercado americano impulsionado pela concorrência acaba priorizando mais o enriquecimento de grandes corporações do que o bem-estar dos trabalhadores. Isso ainda é piorado pela tradicional hesitação do governo em fornecer mais direitos trabalhistas, especialmente durante o governo Trump. Embora o candidato Trump tenha feito campanha a favor dos trabalhadores, seu governo acabou afastando muitas regras de segurança no trabalho, bem como negou assistência médica a muitas famílias.

A segunda fraqueza dessa relação é a controversa atividade de lobbying no país, que fortalece os interesses das entidades privadas em detrimento do interesse público. Particularmente, os EUA já enfrentaram muitas críticas sobre a forma de lidar com lobbying, devido a essa prática apresentar certas características.

Ainda que muitos advoguem que o lobbying seja uma atividade valiosa de fornecimento de informações e conhecimentos específicos para a construção de políticas públicas, há uma distribuição desigual de recursos econômicos para o lobbying. Em outras palavras, aqueles capazes de investir altos valores em lobbying e então terem legislações favoráveis sendo promulgadas são justamente as maiores corporações. Drutman exemplifica essa discrepância dizendo que existem 16 lobistas representando empresas para cada um que representa um sindicato ou grupo de interesse público. Além disso, a prática lobista americana sofre de falta de transparência, de forma que nem sempre fica claro quem está defendendo determinada causa e o porquê, o que acentua a tendência de favorecimento de grupos de alta renda. 

O surto de Covid-19 em 2020-2019 e a vitória de Biden certamente influenciaram a relação entre governo e setor privado nos EUA.

A crise enfatizou que, mesmo o governo americano sempre ter valorizado criar ferramentas para um livre mercado, em períodos de intensa crise, intervenções públicas são sempre bem-vindas e necessárias. Os sucessivos pacotes sancionados pelo governo para combater os efeitos econômicos e dar suporte a famílias e empresas afetadas pelo vírus foram essenciais para manter o ciclo comercial ainda em execução.

A pandemia, aparentemente, também foi favorável para os sindicatos receberam maior apoio público. Nas últimas décadas, a filiação sindical havia decaído gradualmente. A crise atual revelou como os trabalhadores são vulneráveis sem a ajuda dos sindicatos. Estes foram cruciais na pandemia lutando por vacina para trabalhadores de linha de frente, por garantir adicionais de periculosidade e cobrando equipamentos de proteção pessoal para os empregados.

A atividade sindical também está sendo impactada pela administração de Biden. O atual presidente é totalmente favorável à promulgação da Lei de Proteção ao Direito de Organização (PRO). O projeto de lei permite que o “National Labor Relations Board”, agência federal independente que protege os direitos dos trabalhadores do setor privado, aplique multas a empregadores que violem direitos trabalhistas. Bem como, a futura legislação reduz restrições ao direito de greve e altera leis trabalhistas antiquadas ainda vigentes em 27 estados.

Além disso, a pandemia de Covid-19 causou a diminuição expressa de investimento em lobbying por empresas devastadas pela crise. À medida que a pandemia ocasionou lockdowns e encolheu a atividade econômica de muitos setores, inúmeras associações comerciais reduziram seu orçamento e/ou reformularam seus planos anuais. Consequentemente, as associações comerciais americanas mais poderosas na prática de lobbying reduziram seus investimentos nessa atividade no último ano. Entretanto, essa redução não significa necessariamente que o lobbying no país parou de favorecer mais conglomerados empresariais do que interesses públicos.

Considerando esse panorama, existem algumas alterações defendidas no que tange aos pontos fracos. Em primeiro lugar, desenvolver e incrementar mais políticas públicas em defesa dos trabalhadores é de suma importância. Espera-se que a administração de Biden seja mais aberta a essas mudanças e que a própria Lei PRO seja um grande avanço. O governo, nesse âmbito, deveria concentrar seus esforções em impulsionar benefícios e proteção ainda maior aos trabalhadores, em especial, nesse momento de pandemia; e priorizar seus direitos em detrimento dos valores de livre comércio.

Em segundo lugar, embora o lobbying tenha sido reduzido durante a pandemia, a prática ainda está se adaptando para continuar servindo às empresas mais ricas, mesmo com distanciamento social. O governo deveria intensificar a luta por mais transparência nesta atividade de modo a tornar sempre claro quem está investindo em que e por que, bem como deveria propor uma reforma capaz de garantir o direito de qualquer cidadão a praticar lobbying e romper a lógica corrupto vigente entre dinheiro, lobistas e legisladores.

Portanto, equilibrar os interesses entre ambas as partes dessa relação tradicional entre empresas e governo é a única chave para continuidade do sucesso econômico dos EUA. Contrabalancear os benefícios de ambos os lados é a solução pela qual um consenso real e democrático pode ser alcançado em um momento econômico tão desafiador.

Foto: Flying Half Mast de Jonathan Simcoe under the Unsplash License